É uma experiência interessante para que tenhamos uma percepção da diversidade religiosa do catolicismo popular em Minas Gerais e do quanto as Congadas estão inseridas nessa seara, assumindo singularidades que aos olhares pouco atentos, parecem algo extraordinário ou fora do contexto das celebrações, sem contudo refletir, que na realidade, a Coexistência Cultural e Religiosa é uma vivência natural para as pessoas que a praticam, sem se preocuparem em ocultar suas representações simbólicas para serem aceitas na interioridade da procissão.
Na madrugada fria da sexta feira da paixão, ouve-se à distância, um ressoar de tambores, que ao aproximar-se sob as frágeis iluminações das ruas, revela ser de um grupo de Congado a conduzir um rito processional, a Procissão do Sr. Morto. Cânticos, rezas, conversas, matracas, soldados vestidos a caráter romano contornam a esquina, enquanto uma mulher apresenta o “cântico da Verônica” em meio à semiescuridão. A mulher toda coberta de véu, Junto a um coral feminino, canta as dores daquele que está provisoriamente morto.
Em seguida, aparece uma banda de músicos da cidade, a Fanfarra de Rio Paranaíba, com um ritmo a evocar tristeza, cadenciado, enquanto isso, lá na frente, liderando a Procissão do Sr. Morto, o Congo Sereno canta, dança e ressoas suas caixas, os tamborins, as violas, os reco-recos, acompanhados pela harmonia dos acordeons. O Moçambique de Rio Paranaíba, nas canções triste do Capitão Abel Jerônimo (falecido em 2011), segue o cortejo junto com o Congo Sereno.
A Procissão do Sr. Morto, que saíra da Igreja Matriz São Francisco das Chagas e fora até o portal do cemitério, retorna em júbilo com o Cristo ressuscitado. E é justamente na cantoria de recepção à porta da Igreja, já quase ao amanhecer do dia, que se ouve a voz do Capitão do Congo Sereno saudar a ressureição: “aiô/viva! /aiô viva! / viva cristo ressuscitado! / Viva cristo ressuscitado! / Cristo dê a sua benção! Cristo dê a sua benção! / meu povo tá precisano! / meu povo tá precisano!” e um coral de vozes masculinas a responder: “aiôô, aiôô, vivaa! / aiôô, aiôô, vivaa! / viva cristo ressuscitadoooo aiaaaiaai!” (Capitão Erivaldo Aleixo, 2009).
Após a saudação da chegada, o Congo Sereno segue até o altar com a imagem de Cristo ressuscitado, e solicita-lhe as bênçãos: “oh meu Sr. Dá sua benção! / oh meu Sr. Dá sua benção! / para a minha companhia! / para a minha companhia!”. (Capitão Erivaldo Aleixo, 2009). Um tríduo musical cantante é o que destacamos nessa Procissão do Sr. Morto, tríade de elementos culturais que sintetizam de maneira prática a coexistência religiosa que registramos na sexta-feira da semana santa.
A Fanfarra de Rio Paranaíba, que executa uma marcha fúnebre; o Moçambique de Rio Paranaíba a entoar cantorias por meio de uma melodia de lamentações, sob o som das gungas – latas contendo esferas de chumbo que ficam amarradas ao tornozelo dos dançadores – a tilintar a tristeza; o Congo Sereno, que no seu modo especifico de tocar mais alegre, dança aos sons dos tambores, e à frente anuncia a Procissão do Sr. Morto, bem como retorna inebriado de alegria, cantando a boa nova de Cristo ressuscitado.
Essas narrativas que resultam de observações e análises imagéticas por meio de audiovisuais do autor (BRASILEIRO, 2009), são as retratações fieis da presença entre modos culturais diferentes de existir, possibilitadas evidentemente, pela atuação nesse cenário, do Padre Roberto Cristino, da Paróquia São Francisco das Chagas de Rio Paranaíba, na primeira década do ano 2000.
A interatividade com os congos, os moçambiques, as festas religiosas dos reinados dos rosários, das Congadas, na cidade e na região, demonstraram e continua a demonstrar por onde ele vai, a possibilidade prática dessa coexistência cultural e religiosa, saindo do campo teórico, visualizando-a na realidade viva, das manifestações inseridas por vezes, no catolicismo popular. Isso nos permite afirmar que certos rituais coexistem em harmonia ou em meio a tensões, a depender dos atores sociais que ocupam os cenários religiosos em determinada época e lugar.
Esse corpus documental resulta naturalmente, de um olhar também etnográfico e de uma percepção dos rituais possíveis de ser registrados. É nesse campo discursivo que nos deparamos com a realização da Procissão do Sr. Morto. Essa singular encenação ocorrida em plena sexta feira da paixão, o período da madrugada, é a síntese da coexistência cultural e religiosa que demostramos ser possível de acontecer quando os diálogos acontecem sem hierarquização de valores religiosos.
Pra Saber Mais, e:
Artigo: https://revistarelicario.museudeartesacrauberlandia.com.br/index.php/relicario/article/view/29/23