Na Várzea Grande era por demais conhecido e estimado o Burro Branco do Sô Tunico de Algodão. O burro era branco, porque outra cor não se via nele. E o Sô Tunico era de algodão, por causa, não só da brancura da pele albina, mas também do cabelo dele que sem o chapéu também sempre branco parecia algodão desfiado.
As notícias do Burro Branco do Sô Tunico de Algodão eram prosas dos mais velhos quando caía o sol da tarde e, nas esquinas, os velhos acocorados se punham a prosear, assim como se estivessem num colóquio de finalização de algum assunto, o Zé Fornáia e o Zé Jiló. Zé Fornáia voz de gente saudosista iniciava a conversação:
– Era um burro bão aquele sô! Mais aí também que burro bravo, indecente e incompreendido com a gente.
Tinha certo uma questão de procedência os pensamentos do Zé Fornáia, mas é claro que havia empatia entre o Burro Branco e o Sô Tonico de Algodão, daí que não se dava para saber se a pirraça do burro com Zé Fornáia era por razões de tratamento ou até de sentimento, que Zé Fornáia, como ele mesmo dizia, não tratou direito o burro conforme relatava ao primo parente distante Zé Jiló:
– Que num é de se vê, Zé Jiló, que o tal burro me deu canseira, tudo por causa de que esqueci que estava montado nele e mandei esporas nas ancas dele? Zé Jiló, acabrunhado com a falta de cuidado do primo, respondeu:
– Mas home de deus, ninguém nunca botô ispora no burro? que se assucedeu com ocê? Zé Fornáia não teve como fugir e reconheceu sua desdita: – É meu primo, foi assim que adescobri que as cacetadas das tristezas nesta vida, faz a gente entender a vida de outro jeito.
Zé Fornáia cabisbaixo e envergonhado memorizou os pensamentos para responder sem gesto de humilhação e já que era preciso falar o assucedido na beira da margem do rio Água Grande, voz bem baixa, quase a sussurrar contou:
– Daí que errei, errei não, a bem da verdade esqueci mesmo a esporada sem querer que dei no burro. Foi então que ele deu a dispará ribancera baixo alouquecido e num repente (silêncio, pausa, suspiro) ele empacou! Empacou de frente Zé Jiló! Bem de frente duma moita de capim gordura que escondia uma espinheirama e eu caí desajeitado de lá. Foi uma arranhação, uma machucação, espinheira me pegou de todo lado sô, no pé, no braço, barriga, bunda, tudo quanto lugá, Zé Jiló.
Zé Jiló, que conhecia bem o burro, – Cá lá, o Burro Branco que comia gabiroba e num dispensava mangava também, que se visse flô de juá na beira do brejo ele comia a flô na maió das eleganças? Eita burro diferenciado, hein, Zé Fornáia?
O Burro Branco do Sô Tonico não gostava do Zé Jiló, menos ainda do Zé Fornáia; com eles no arreio o burro trotava desengonçado e fazia o leite derramar pelas tampas dos latões trazidos de manhã para entregar litros aqui, litros acolá para o povo do arraial. O burro fazia pirraça, laçá-lo era uma peleja, bem diferente era com Sô Tonico, uma harmonia feito carne e unha dos pés, de vivências de muitas eras adas, o Burro Branco era assim tão erado quanto era o Sô Tonico de Algodão.
E num suspiro de suspense Zé Fornáia arrematou a prenunciação surgida lá no início da prosa: – Pois deveras que uns dias depois, sete ou nove talvez, o burro sumiu, a gente procurou e ele estava estirado lá no pasto, morto bem morto que acho de uma tristeza assim sentimental seu Zé Jiló!